terça-feira, 30 de agosto de 2016

Síndrome de Munchausen por Procuração - Caso III



Síndrome de Munchausen por Procuração – Estudo de Caso III e Análise Clínica-Forense

A Síndrome de Munchausen por Procuração (SMP) constitui uma forma extrema e potencialmente letal de violência infantil, caracterizada pela fabricação, simulação ou indução de sintomas físicos ou psíquicos em uma criança por parte de seu cuidador, geralmente a mãe, com o objetivo de assumir o papel de cuidadora devotada e obter ganhos emocionais ou relacionais decorrentes da mediação com os serviços de saúde.

Conforme descrito na tese de mestrado da psicóloga clínica Heliane Maria Silva, a SMP é uma das formas mais graves de maus-tratos infantis, sendo frequentemente invisibilizada no contexto clínico e subnotificada nos sistemas de proteção. A autora destaca que a síndrome introduz no campo da violência contra a infância um componente adicional: o da incredulidade, dado que os relatos frequentemente “soam inverossímeis” mesmo para profissionais experientes, dada sua complexidade e requintes de dissimulação.

A literatura especializada aponta como traços comportamentais recorrentes da mãe perpetradora:

Comportamento aparentemente calmo e controlado diante de quadros clínicos alarmantes;
Insistência em intervenções diagnósticas e terapêuticas, mesmo diante da ausência de evidências patológicas;
Rejeição ou negação de resultados laboratoriais normais;
Postura hiperparticipativa nos cuidados hospitalares, com presença constante ao lado da criança e formação de vínculos próximos com a equipe médica, o que frequentemente mascara a real dinâmica abusiva.

Entretanto, registros audiovisuais obtidos por câmeras de segurança em ambientes hospitalares já documentaram que, em contextos afastados da observação direta da equipe de saúde, o comportamento da mãe se transforma, revelando condutas agressivas e organizadas, orientadas à produção deliberada de sintomas. Dados da literatura sugerem que aproximadamente 70% dos agressores mantêm a indução dos sintomas mesmo durante o período de internação hospitalar.

A SMP é compreendida no campo das perversões, sendo sustentada por uma dinâmica relacional sadomasoquista em que a criança é objetificada, instrumentalizada e desumanizada. A figura materna, nesse contexto, utiliza o filho como meio para regular seus afetos e controlar suas interações com o entorno, muitas vezes sem empatia ou reconhecimento da alteridade da criança.

Estudo de Caso: Paciente M., 6 meses de idade

Este caso clínico, extraído da tese supracitada, refere-se a uma lactente do sexo feminino, etnia caucasiana, que permaneceu hospitalizada por 75 dias, sob recorrentes alegações maternas de paradas respiratórias e cianose desde o nascimento. A anamnese incluía dois episódios prévios de internação, um deles por suposta eliminação de sangue pela boca e nariz, e outro por pneumonia associada a crises convulsivas.

Durante a internação atual, a paciente foi diagnosticada com broncopneumonia, embora apresentasse estado geral relativamente estável. As crises relatadas — convulsões, apneias e episódios de vômitos — ocorriam exclusivamente na presença da mãe e não eram testemunhadas pela equipe médica. Em um episódio, a mãe foi surpreendida com um saco plástico nas mãos, enquanto a criança encontrava-se cianótica. Apesar disso, a relação causal não foi imediatamente estabelecida.

Ao longo das semanas, observou-se piora do quadro clínico da criança apenas nos períodos em que se encontrava sozinha com a genitora. Destaca-se que:

A criança apresentou níveis tóxicos de fenobarbital no sangue, mesmo recebendo doses não compatíveis com a intoxicação, e a mãe foi vista com um frasco do medicamento;
Foi detectado, via endoscopia, um fragmento de cimento de parede no estômago da criança, que a mãe alegou ter sido ofertado pela irmã de 3 anos — hipótese improvável, considerando que a referida criança não havia visitado a paciente no hospital;
Exames complementares, como EEG, pHmetria, estudo do sono e REED, foram normais ou inconsistentes com o quadro relatado;
Após a suspensão da medicação e vigilância contínua da mãe pela equipe de saúde, a criança deixou de apresentar sintomas.

Diante da consistência entre os episódios sintomáticos e a presença exclusiva da genitora, o Comitê de Ética Hospitalar, em articulação com o Conselho Tutelar, decidiu pela retirada da guarda dos pais, sendo a criança encaminhada aos cuidados da madrinha. Contudo, dois meses após a alta, a criança faleceu, tendo o laudo do Instituto Médico Legal (IML) indicado como causa da morte um edema agudo de pulmão.

Do ponto de vista psicossocial, a mãe apresentava histórico de institucionalização na infância, alegações de rejeição familiar, e recusou-se a submeter-se a tratamento psicológico, negando sistematicamente todas as suspeitas levantadas. O pai demonstrou perplexidade diante da gravidade do quadro.

Considerações Técnicas

Este caso reforça a gravidade e letalidade da SMP, especialmente quando não detectada precocemente. As intervenções médicas desnecessárias, os riscos de intoxicação medicamentosa e a manipulação da equipe de saúde são elementos centrais dessa síndrome, exigindo vigilância técnica constante.

No contexto da alienação parental, observa-se que, em casos específicos, o genitor alienador pode recorrer à indução de sintomas físicos e relatos de adoecimento como estratégia para inviabilizar a convivência com o outro genitor. A sobreposição entre condutas alienadoras e elementos compatíveis com a SMP deve ser cuidadosamente investigada por profissionais da saúde, peritos judiciais e operadores do direito.

Recomenda-se que:

Médicos pediatras e profissionais da saúde mental sejam capacitados a identificar indicadores precoces de SMP;
Em casos de adoecimento recorrente sem etiologia médica clara, seja considerada a hipótese de indução de sintomas por terceiros, especialmente quando presente histórico de conflitos familiares ou disputas judiciais;
Conselhos Tutelares e autoridades judiciárias sejam acionados diante de suspeitas consistentes, com vistas à proteção da criança e responsabilização do perpetrador.

Conclusão

A Síndrome de Munchausen por Procuração constitui uma forma extrema de negligência e abuso, com potenciais consequências fatais. Quando associada a condutas alienadoras, representa uma ameaça séria à saúde física e emocional da criança. A atuação técnica precisa, articulada e embasada é imperativa para interromper o ciclo de violência e proteger os direitos fundamentais da infância.



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