Síndrome de Munchausen por Procuração e Alienação Parental: Manipulação do Estado de Saúde Infantil como Forma de Violência
A manipulação da condição de saúde da criança, utilizada como meio de afastamento do outro genitor, tem se tornado uma estratégia cada vez mais frequente em contextos de disputa parental judicializada. Essa conduta pode configurar a coexistência de alienação parental e de Síndrome de Munchausen por Procuração (SMP), forma de abuso grave que coloca em risco a integridade física e psicológica da criança e pode culminar em sequelas duradouras ou até mesmo em desfechos letais.
A SMP, conforme conceituada pela literatura médica e psicológica, é caracterizada pela produção ou simulação intencional de sintomas físicos ou psicológicos em crianças por parte de seus cuidadores, com o objetivo de obter atenção, compaixão ou outros ganhos secundários. Quando utilizada em contextos litigiosos de guarda ou convivência, essa prática adquire um caráter estratégico, voltado à desqualificação do outro genitor ou à obstrução do vínculo afetivo da criança com ele.
Em casos forenses, é fundamental observar se a narrativa apresentada pelo cuidador principal coincide com os achados clínicos objetivos. Quando há discrepâncias entre o discurso parental e os dados médicos — especialmente em casos de relatos de sintomas graves sem confirmação clínica, múltiplas idas a diferentes unidades hospitalares, mudança frequente de médicos ou recusa em compartilhar laudos com o outro genitor — deve-se considerar a hipótese de SMP.
Um exemplo clínico elucidativo é descrito na tese de mestrado da psicóloga clínica Heliane Maria Silva, e reproduzido a seguir:
Estudo de Caso – Paciente W., 5 anos de idade
Sexo masculino, etnia afro-brasileira, hospitalizado por 45 dias. A mãe relatou que a criança havia apresentado uma crise convulsiva em casa. Ao chegar ao hospital, o paciente encontrava-se em estado pós-crítico, sonolento e rebaixado, quadro que persistiu por mais de 24 horas, motivando internação em unidade de terapia intensiva.
Segundo a genitora, as crises convulsivas seriam recorrentes desde os três anos de idade. O histórico médico fornecido incluía nascimento prematuro (28 semanas), com internação neonatal prolongada e ventilação mecânica. A mãe mencionava episódios sucessivos de convulsões e uso prévio de anticonvulsivantes, embora nenhum episódio tenha sido observado diretamente pela equipe médica em diversas internações.
Durante os internamentos, foi observada dosagem sérica de fenobarbital acima dos níveis terapêuticos (130–150 µg/ml), o que levantou suspeita de superdosagem não prescrita. Essa hipótese foi fortalecida pelo relato de condutas maternas inadequadas e pela revisão de prontuários anteriores, nos quais constava diagnóstico prévio de SMP e perda temporária do poder familiar, com guarda transferida ao avô materno — providência, entretanto, negligenciada pelo sistema de proteção, permitindo que a mãe reassumisse os cuidados da criança e reiniciasse o ciclo abusivo, agora em outro hospital.
Após avaliação psicossocial e psiquiátrica, a genitora referiu comportamento compulsivo de medicação dos filhos, como tentativa de demonstrar zelo e reconstruir laços afetivos com o ex-cônjuge. A rede familiar relatou histórico de dificuldades cognitivas da mãe, perdas precoces (morte da própria genitora aos 6 anos), e criação em ambiente vulnerável com fragilidade afetiva. O paciente, após afastamento da genitora e interrupção da medicação, permaneceu dois anos sem crises convulsivas, sob guarda da tia materna.
A mãe foi encaminhada para tratamento psiquiátrico e, posteriormente, passou a frequentar atendimento em ambulatório de apoio familiar, juntamente com o filho, sob acompanhamento multiprofissional.
Aspectos Técnicos e Psicossociais Relevantes
A utilização do discurso médico como ferramenta de manipulação parental, além de comprometer a qualidade da assistência em saúde, viola os direitos fundamentais da criança, coloca em risco sua vida e pode constituir crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além de configurar hipóteses de perda ou suspensão do poder familiar (arts. 1.638 e 1.639 do Código Civil).
Presença de cuidador excessivamente ansioso e detalhista na descrição dos sintomas, exigindo exames e procedimentos médicos desnecessários;Em casos em que há denúncias reiteradas de enfermidades infundadas, é recomendável a avaliação técnica multidisciplinar, com especial atenção para os seguintes indicadores:
Mudanças frequentes de unidades hospitalares ou profissionais de referência;
Negativa em compartilhar informações médicas com o outro genitor;
Afastamento sistemático da criança do genitor não guardião com base em alegações clínicas não confirmadas;
Indícios de ganhos secundários do cuidador com o sofrimento infantil (atenção, validação social, retaliação ao ex-cônjuge, manutenção do controle exclusivo sobre a criança).Nos casos extremos, como ilustrado acima, pode haver risco à vida da criança em decorrência de intoxicações medicamentosas, infecções iatrogênicas, ou danos emocionais severos.
Profissionais de saúde devem registrar com precisão os relatos dos cuidadores e buscar validação clínica independente;Recomendações Técnicas
Psicólogos forenses e assistentes técnicos devem investigar padrões recorrentes de obstrução da convivência parental acompanhados de discursos médicos duvidosos;
Autoridades judiciais e conselhos tutelares devem atuar prontamente diante de relatos compatíveis com SMP ou negligência institucional;
Estudos psicossociais e avaliações multiprofissionais devem ser priorizados nos processos em que há suspeita de simulação ou indução de sintomas por parte do guardião.Considerações Finais
A combinação entre alienação parental e Síndrome de Munchausen por Procuração representa um grave fator de risco para a integridade biopsicossocial da criança, ultrapassando os limites da violência emocional e adentrando o campo da negligência médica induzida e da agressão física indireta. A atuação técnica precisa, interdisciplinar e fundamentada é fundamental para a proteção integral da infância e para a responsabilização legal de condutas abusivas.
A judicialização de conflitos parentais exige atenção constante à manipulação do discurso clínico como estratégia de litígio. Profissionais do Judiciário, da Psicologia e da Medicina devem permanecer atentos à detecção precoce desse padrão, assegurando o direito da criança à convivência saudável com ambos os genitores e à proteção integral contra abusos.
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