A Alienação Parental e sua Interface com a Síndrome de Munchausen por Procuração: Considerações Clínicas e Forenses
A alienação parental figura entre as mais insidiosas formas de violência psicológica praticadas contra crianças e adolescentes. Sua natureza insidiosa reside no fato de que o genitor alienador — geralmente o guardião unilateral — manipula, condiciona e instrumentaliza os filhos como agentes de sua própria agenda litigiosa, comprometendo gravemente o desenvolvimento emocional e os vínculos afetivos da criança com o outro genitor. Em alguns casos extremos, observa-se que a instrumentalização atinge patamares de gravidade ainda maiores, nos quais o alienador simula ou induz enfermidades físicas ou psíquicas nos filhos, sobretudo às vésperas ou logo após os períodos de convivência com o outro genitor.
Esse fenômeno pode ser tecnicamente compreendido à luz da Síndrome de Munchausen por Procuração (SMP) — forma rara e grave de maus-tratos na qual o cuidador, usualmente a mãe biológica, simula ou provoca sintomas físicos ou psicológicos em uma criança com o objetivo de obter atenção, validação ou outros ganhos secundários por meio da mediação dos serviços de saúde.
A terminologia "Síndrome de Munchausen" foi introduzida por Richard Asher, psiquiatra britânico, que se inspirou em um personagem da literatura alemã para descrever pacientes que produziam deliberadamente histórias clínicas falsas, muitas vezes se submetendo a intervenções médicas invasivas sem indicação real. Posteriormente, Roy Meadow, nefrologista pediátrico, descreveu, em 1977, a manifestação por procuração, caracterizando-a como uma forma severa de abuso infantil.
Conforme descreve a psicóloga clínica Heliane Maria Silva, em sua tese de mestrado:
“Pouco conhecida, mesmo entre profissionais da saúde, a SMP revela-se uma grave forma de violência, geralmente praticada pela mãe, que rompe com a lógica do cuidado e impõe à criança uma condição contínua de sofrimento, dificultando a significação subjetiva dos eventos vivenciados."
Os sintomas usualmente induzidos ou simulados na SMP incluem, mas não se limitam a: vômitos persistentes, diarreias, sangramentos inexplicados, convulsões, síncopes, infecções recorrentes, febres de origem indeterminada, dificuldades respiratórias, déficits de crescimento e quadros neurológicos não confirmados. Tais manifestações costumam levar a criança a uma série de exames e procedimentos médicos desnecessários, dolorosos e, por vezes, de risco letal.
No contexto forense, é particularmente preocupante quando essa simulação ocorre sistematicamente em momentos que antecedem o exercício do direito de convivência parental. Tal padrão, se recorrente e sustentado por alegações sem fundamentação clínica, pode constituir forte indício da existência concomitante de conduta alienadora com traços de Munchausen por procuração.
O Caso Pollyana
Um caso emblemático descrito por Trajber et al. (1996) e publicado no Jornal de Pediatria do Rio de Janeiro exemplifica a complexidade e gravidade da SMP. A paciente, Pollyana, uma criança de 3 anos, foi submetida a uma extensa investigação médica devido a supostos episódios recorrentes de sangramento pelo ouvido, apresentados como inexplicáveis pela genitora.
Após ampla bateria de exames e procedimentos, todos com resultados normais, além de observações comportamentais da mãe — como manipulação da equipe médica, tentativas de autopromoção na mídia e inconsistências nos relatos —, a equipe médica passou a suspeitar de fraude. O desfecho da investigação revelou, por meio de exame de DNA, que o material sanguinolento aplicado no ouvido da criança não era de origem compatível com seu sangue. Em determinado momento, a própria criança, sob leve sedação, afirmou que “a mamãe” colocava sangue em seu ouvido.
Além dos riscos médicos, o caso exemplifica os danos emocionais e sociais envolvidos. A mãe possuía histórico psiquiátrico relevante, narrativas incoerentes, comportamento histriônico e manipulação de terceiros — fatores frequentemente identificados na literatura especializada como indicadores psicopatológicos compatíveis com a SMP.
Interface com a Alienação Parental
Na prática clínica e pericial, observa-se, com relativa frequência, o uso recorrente de alegações de doença da criança para inviabilizar ou restringir o contato com o genitor não guardião. Tais alegações, quando infundadas, tendem a surgir sempre às vésperas das visitas, em um padrão sugestivo de manipulação da realidade com objetivos obstrutivos. Em uma situação relatada recentemente, um pai reportou estar prestes a registrar o quinto boletim de ocorrência após a mãe, novamente, alegar que a criança estava com vômitos justamente no dia da visita agendada.
Diante da recorrência desse padrão, é imprescindível que profissionais de saúde — especialmente médicos pediatras e psicólogos — estejam atentos à possibilidade de estarem diante de um quadro de alienação parental associada a SMP. A recusa ou impossibilidade sistemática da criança em manter contato com o genitor, sustentada por justificativas médicas não corroboradas por avaliação clínica, deve ser tecnicamente investigada.
Médicos e profissionais da saúde devem documentar com precisão os relatos parentais e realizar uma avaliação clínica independente da criança;Recomendações Técnicas
Em casos suspeitos, é recomendável acionar equipes multidisciplinares, inclusive com atuação do Conselho Tutelar ou Ministério Público, dada a gravidade do potencial abuso;
A criança deve ser protegida de exposições desnecessárias e de procedimentos médicos sem justificativa diagnóstica;
Recomenda-se a avaliação psicológica da mãe/cuidador, com vistas à identificação de traços de transtornos factícios ou padrões manipulativos de comportamento.Considerações Finais
A alienação parental, quando associada a práticas condizentes com a Síndrome de Munchausen por Procuração, constitui uma forma grave de violência psicológica e física contra a criança, demandando atenção imediata das redes de proteção. A banalização do discurso de doença infantil, sem evidência clínica, deve ser criteriosamente investigada. A sistematização dessa prática pode tornar-se não apenas um fator de risco ao desenvolvimento infantil, mas uma verdadeira ameaça à integridade física e psíquica da criança.
O reconhecimento e manejo precoce desse tipo de dinâmica disfuncional exige capacitação técnica e sensibilidade clínica dos profissionais envolvidos, com vistas à prevenção de danos irreparáveis.
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