Hoje no hospital ao lado do meu inconsciente pai, abri um diário
imaginário. As páginas da vida lidas ali ao pé da cama formaram um
quebra-cabeças fácil de montar. Revi a vida, lembrei da infância, juventude,
vida adulta. Lembrei dos sentimentos do cotidiano e trouxe à tona tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie.
Na minha memória repousa tudo que a ela foi entregue e que o
esquecimento ainda não absorveu nem sepultou. Histórias de Saci, piadas de
papagaios, o doce de três cores, o risoto, o omelete e o ‘tete’ do papai. Os
pensamentos fluíam com emoção.
Me lembrei de cada móvel da minha casinha de bonecas: fogão, mesa com
cadeiras, janelinha com cortina, porta com maçanetas, tudo em tamanho original.
Nossa, como minhas amigas gostavam de brincar lá.
Depois me lembrei do abacateiro que papai não cortou só porque chorei
dizendo que havia aprendido na escola que as folhas eram o ‘nariz’ dele.
Que saudades me deu da piscininha que ele mesmo fez pra mim.
Relembrei meus assuntos prediletos: passar sobre a pinguelinha segurando
no bambu era um passeio verdadeiramente radical! Depois quando eu estava
cansada de caminhar ele me colocava sob os ombros, de ‘cavalinho’.
Na hora do almoço sempre fez questão de cortar o fígado bem picadinho e
descascava a laranja tirando a pele e cortava de uma forma muito especial retirando
as sementes.
Pensamentos felizes fluíam com emoção e eu quase podia sentir o cheiro
do rocambole de goiabada e o sabor do chup chup e dos sorvetes.
A cama de hospital é mágica, abriu caminhos para mundos interiores, como
se ela mesma fosse uma janela. Vi os troféus dos campeonatos de baralho, o
rancho de ferramentas, as balanças feitas com esmero e que embalaram o sonho de
muitas crianças. Vi passar por mim todos os brinquedos feitos em sua marcenaria
amadora: carrinhos, caminhões, réplica da escola de cadetes do exército, aviões,
helicópteros, e uma infinidades de miniaturas que fizeram a festa de muitas
crianças.
Quanto mais eu olhava pra dentro, mais feliz eu ficava. Aí estava presente o céu, a terra e o mar, com todos os
pormenores que neles pude perceber pelos sentidos e senti o cheiro do perfume
do meu pai.
Jairzão pescador me
ensinou pontualidade, honestidade, ética, me ensinou a gastar apenas o que
ganho.
A cada dia que passa está
maior a aceitação em mim da impossibilidade de receber dele as inúmeras ligações
que eu recebia por dia. A impotência diante dos fatos me forçam a ganhar
paciência pra enfrentar os dias.
No hospital a gente
aprende a reparar no tempo e nos sentimentos. Um saudosismo saudável me
invadiu. Me lembrei dos pasteis embalados em folhas de papel cor de rosa
amarradas com barbante branco e do chocolate Laka que sempre vinha junto com a
chegada de meu pai às sextas-feiras no final da tarde.
O carrinho de rolimã cor
de rosa com freio, o gravador, a vitrolinha, a “Caloi” verde, o jogo de
panelinhas vermelhas foram meus presentes prediletos.
Quem fará os passeios
regulares com o cachorro Nero?
Quem falará para Luiza: -
Cadê a menina do vô?
Quem me chamará de Tatá?
Volto à realidade. Lá fora há um pátio amarelo de onde se pode ouvir
gorjeios das pombas livres a alimentar os filhotes no ninho.
Às vezes um avião passa, uma ave gorjeia e uma enfermeira aparece. Tudo está
lá cumprindo o seu destino.
É como se o segredo da vida estivesse nesse hospital. É lá que encontrei a mim mesma, e recordei das ações que fiz,
o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-los. É lá
também que me lembrei que em algum lugar agora tem um alienador parental
destruindo a memória de uma criança e esse filho quando adulto não terá como eu
as mais doces lembranças de que me recordo do meu amado pai.
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